WANDERLEY NOVATO
A CURIOSA HISTÓRIA DE UM HOMEM QUE FUGIU DO MAR
Quem me vê hoje, passeando pela cidade, ou calmamente assentado em uma cafeteria depois de comprar um livro de poesias em uma livraria de rua, não sabe que eu vivi muito tempo trabalhando bem longe, no mar, depois de ter sido feito prisioneiro por uma empresa que me obrigava a passar meus dias em labuta desprovida de sentido que quase me levou à total exaustão. Devo confessar, no entanto, que entrei voluntariamente nessa estranha e cansativa rotina, porque, quando nela me envolvi, estava seguro de que se tratava de um nobre ofício, que eu desempenhava com orgulho e até com certo prazer. Acredito que o que eu passei aconteceu e ainda acontece com muitas pessoas que lá ainda estão ou que vivem experiências similares, e foi por isso que decidi contar a quem possa interessar essa curiosa parte da minha vida, transcorrida nos últimos anos.
Eu sempre tinha vivido no interior do país, e não dava muita importância às viagens para a praia que muitos amigos faziam habitualmente nas férias. Conheci o Rio de Janeiro, mas detestei a cidade; conheci também algumas capitais nordestinas, mas as praias eram sempre cheias e barulhentas. Quando eu viajava, sonhava na verdade em conhecer algum lugar em que os efeitos danosos da civilização não estivessem tão presentes, e foi assim que resolvi fazer uma viagem para a África, o continente mais afastado do capitalismo industrial. Passei pela África do Sul, mas o meu destino era, de fato, Moçambique, que ostentava à época o título pouco digno de “país mais pobre do mundo”, que, curiosamente, foi o que me atraiu. Como é um país de língua portuguesa, achei que não teria dificuldades para me adaptar, e estava disposto a ficar por ali muito tempo.
O que eu queria de fato era conhecer as praias desertas do Oceano Índico, seguindo a recomendação de um conhecido que também procurava descobrir esses poucos paraísos escondidos que ainda existem no mundo. E foi assim que, conversando com “nativos”, pegando caronas, fui me aventurando pelo país até chegar a um vilarejo que eu procurava, ao norte, no litoral. Eu estava longe de tudo! Era uma praia não muito grande, que ficava em uma enorme baía, cercada por uma floresta muito densa – e mais nada. Era um lugar de acesso perigoso porque, além da floresta estar praticamente intocada, e haver animais selvagens, havia ainda a possibilidade de existirem nas imediações minas terrestres, colocadas na época da guerra de independência do país. Lá chegando fui cativado tanto pela beleza do lugar quanto pela a vida simples dos poucos moradores – todos negros moçambicanos, de uma etnia do próprio lugar, mas que sabiam falar o português. Apesar de ser um completo estranho para eles, fui muito bem recebido. Lembro-me que, a princípio, ficava apenas na praia, o dia inteiro deitado, sem fazer nada, mas logo que vi a tranquilidade da água e soube que era seguro, decidi nadar todos os dias, indo bem longe, até onde eu conseguisse. E foi assim que criei o hábito de me afastar ao máximo da terra e ficar boiando de olhos fechados, embalado pelo mar... Era uma vila pequeniníssima que não tinha nenhuma ligação por estrada com outros lugarejos. Era o final da década de 1990, e lá a internet ainda estava distante. Gostei tanto do lugar que fui adiando o regresso um sem-número de vezes, e foi assim que, um ano depois, lá estava eu definitivamente instalado, e adorando essa nova experiência.
Eu ia à praia todos os dias; entrava no mar para nadar, e depois voltava para descansar e conversar com algum morador que por lá estivesse. Meu dinheiro havia acabado, mas eu havia conseguido um trabalho com um sujeito chamado Tabang, que coletava um tipo de coco, e entregava o que conseguia coletar para um outro sujeito que, de dois em dois meses, surgia de barco, oferecendo em troca roupas e outros artefatos que eram compartilhados pelos moradores. Uma vez por ano apareciam também uns pouquíssimos turistas, geralmente europeus, que tinham ficado sabendo da existência do lugar e se aventuravam a conhecê-lo – sempre chegando de barco. Eu não recebia salário; como pagamento eu podia fazer minhas refeições na casa de Tabang, e ele me cedeu uma casinha pequena que ficava a poucos metros da praia. O meu visto de turista já havia expirado, mas nenhum funcionário do governo teria o que fazer naquele fim de mundo, e assim, inaugurei a minha nova forma de viver, simples, pobre, calma e segura – e eu estava gostando muito de ter me desprendido do mundo “normal”.
No entanto, não há bem que sempre dure... Uns três anos após a minha chegada, as coisas começaram a mudar. A situação econômica do país não melhorava, e os poucos investimentos que aconteciam eram feitos por empresas internacionais sem nenhum controle ou cuidado. A aldeia entrou em total decadência quando uma fábrica se instalou, não posso dizer se ilegalmente ou não, na região. Apesar de estar localizada em um local não tão próximo à praia, a poluição que ela gerava era jogada no mar, atingindo toda a região costeira, e isso teve impactos generalizados na qualidade da água, e, claro, na fauna e na flora. Se já não havia turismo regular, a partir de então é que não houve mesmo, e os poucos moradores foram abandonando o lugar, já que em sua maioria eram pescadores que foram prejudicados pela poluição. Os outros, agricultores, iriam segui-los. E foi assim que Tabang me avisou que também iria embora. A vila estava se se tornando uma cidadezinha fantasma, completamente deserta. Eu também teria que sair... Desanimado, tentava imaginar como poderia reorientar minha vida.
Eu já estava acostumado à rotina do lugar, e fiquei curioso quando soube que uma empresa cujo propósito era “cuidar do mar” estava se instalando na região. Sua chegada estava relacionada à poluição causada pela fábrica. Para mim as suas atividades eram um mistério, mas logo todos os poucos moradores que ainda restavam na vila sabiam que um grande barco estava parado na região há dias, e que algumas pessoas que trabalhavam no barco iam à praia no início da noite, para descansar, e depois voltavam ao barco. Eu não sabia quem eram, ou o que faziam, e então procurei me informar, conversando com eles. Um dos funcionários me disse então que trabalhavam em uma empresa que chamavam de “escritório do mar”, que iria fazer um “trabalho ambiental” na região.
Em poucos dias mais pessoas chegaram; elas passavam o dia inteiro no mar, e a empresa providenciava tudo para eles naquela região distante. Estavam sendo construídas duas plataformas marinhas; um helicóptero trazia tudo em viagens diárias. Eu soube que as plataformas interligadas seriam como uma mini-cidade. Seriam contratadas muitas pessoas para variados, tipos de serviços, definidos pelos dirigentes da empresa e supervisionados por indivíduos que ocupavam cargos de direção, e que seriam mais tarde chamados de “fiscais do mar”.
Segundo me contaram quase todos os trabalhos naquela unidade seriam relacionados ao cuidado com a água; pouca atenção era dada aos peixes, que, inicialmente, foram a razão de ser da empresa quando foi criada, na Itália. O importante era cuidar do nível de impurezas na água, temperatura e informações do tipo, úteis para o governo, eu supunha. A empresa tinha crescido consideravelmente nos anos anteriores, e aquela era apenas uma das suas muitas novas unidades. O inglês era a língua em que todos se comunicavam. Para mim, além de estar desempregado, cuidar do mar me pareceu algo muito correto e importante, e decidi então experimentar esse trabalho.
Para ser contratado era preciso fazer uma prova; não foi difícil; fui aprovado, e passei então a ser um novo integrante “do escritório”. Logo descobri que, como é necessário passar por essa prova para trabalhar na empresa, todos os funcionários se achavam muito importantes e competentes; de fato, soube que até hoje são todos muito orgulhosos de fazer parte dela. Tive um período de treinamento, e aprendi então que os funcionários passavam o dia inteiro no mar. Parte do tempo era passado em barcos ou nas plataformas marítimas, mas uma grande parte do trabalho era, na verdade, feito dentro da água. Disseram-me que eu receberia todo o equipamento de segurança adequado, bem como os instrumentos necessários para o trabalho, e que o trabalho consistia em monitorar a água e analisar os resultados, gerando informações compiladas em relatórios. Uns poucos dirigentes do nível superior ficavam somente nas plataformas, ilhas artificiais, cuidando da administração da empresa – no início, da sua expansão; mais tarde, da sua sobrevivência.
Assim que entrei para a empresa eu continuei morando na mesma casinha em que eu morava, mas dois anos depois fui informado de que uma nova residência estaria à minha disposição, cedida pela empresa, em um condomínio fechado, especialmente construído com casas pequenas, mas muito confortáveis, para todos os funcionários. Como a cidadezinha estava praticamente abandonada, a empresa comprou o terreno por um preço irrisório, e construiu o condomínio, que ficava ao lado da praia. Não posso dizer qual era a real intenção da empresa, uma vez que era realmente necessário existir um lugar onde os funcionários pudessem morar, mas o condomínio era também uma forma bem pouco sutil através da qual a vida de todos os moradores poderia ser facilmente acompanhada. A empresa decidiu fazer na região sua principal base, e para lá foram deslocadas dezenas de funcionários, alguns bem antigos, vindos de outras unidades da empresa, além de serem feitas novas contratações. Assim, à medida em que a empresa crescia, o próprio condomínio também teve uma expansão. Mas, como as casas eram pequenas e o lugar nada convidativo, os funcionários eram sempre solitários. Na verdade, boa parte deles tinha família – esposa ou marido, e até filhos. Mas o local não tinha uma infraestrutura adequada para receber essas pessoas, e então todos foram se acostumando com a necessidade de ter a família distante. A ideia geral que todos compartilhavam, inclusive eu, era de que isso seria por um período limitado; ficaríamos ali apenas por algum tempo, e o retorno à “civilização” não demoraria.
Eu inicialmente recusei essa nova casa no condomínio porque gostava do lugar onde eu morava, mas me informaram que essa recusa não seria possível. Eu argumentei que essa obrigação era ilegal, mas me disseram que eu não poderia então trabalhar na empresa, e me mostraram que, no contrato que assinei, eu havia concordado, em várias cláusulas, com várias coisas desse tipo. Na verdade, como minha situação no país era ilegal, eu não tinha muitas opções... Fui ver a casa, então, e gostei – e assim, passei a morar no “bairro da empresa”, como todos. Saíamos todos, pela manhã, no mesmo horário, supervisionados pela equipe de segurança, e à noite fazíamos o percurso inverso. A equipe de segurança era composta por guardas armados, que percorriam toda a região que um dia foi a aldeia e o seu entorno, sob o argumento de que, num país que, de fato, era politicamente instável e inseguro, grupos ligados às facções políticas que lutavam pelo poder no país, ou mesmo criminosos comuns pudessem chegar até a empresa.
Quando lá comecei a trabalhar, a rotina dos funcionários era, como eu disse, ao voltar do trabalho, descansar na praia. Como no início eles não tinham um lugar onde morar, ocupavam barcos trazidos pela empresa. Depois da construção do condomínio o número de funcionários cresceu bastante, e, à medida em que o trabalho aumentava, quase ninguém mais usava a praia como lugar de descanso. Aparentemente, quanto mais curto fosse o percurso até a cama, melhor...
À minha motivação inicial, principalmente financeira, logo somou-se a importância social das atividades da empresa. De um ponto de vista prático, fui também me acostumando a viver longe da terra todo o tempo, e passei a me dedicar intensamente ao trabalho, fazendo inclusive mais do que era solicitado. Quando entrei eu não acreditava que seria necessário ficar tanto tempo dentro da água; achei que os momentos de análise também ocupariam boa parte do tempo, mas ao longo do trabalho fui percebendo que isso não era verdade. A empresa estava implementando uma nova metodologia de trabalho, e fazíamos testes incansavelmente. Coletávamos amostras de água várias vezes por hora, algumas vezes permanecendo no mesmo local, ou fazendo deslocamentos. À medida em o trabalho se expandia era necessário ir mais longe e ficar mais tempo no mar, e ficávamos realmente cansados. Fui percebendo também que ao longo do tempo outras atividades foram sendo implementadas pela empresa, e passamos a fazer também várias coisas aparentemente relacionadas à prospecção de minérios no fundo do mar – mas, de fato, ninguém na empresa falava sobre isso com clareza.
O salário era bom, e o trabalho, depois de um período de adaptação, embora cansativo, era, para mim, na época, satisfatório. Apesar de rotineiro, sempre era possível modificarmos um pouquinho o modo de realizar as tarefas, sem prejuízo para o resultado. Além disso sempre éramos deslocados para diferentes partes da imensa baía, o que fazia os dias parecerem diferentes. O tempo foi passando, e assim, depois algum tempo, os “serviços do mar” foram me viciando, como se fossem uma droga... Uns dois ou três anos mais tarde toda a minha vida estava quase que exclusivamente voltada para a empresa. Meu único assunto era o meu trabalho. Como todos os outros funcionários, eu ficava no mar o dia inteiro; muito esporadicamente eu voltava à praia durante o dia. Só à noite, e nos finais de semana, eu, com certeza estaria em terra firme – mas, confesso, ficava a maior parte do tempo conversando com colegas, sempre pensando em como seria o meu trabalho no dia seguinte- e, na época, isso não parecia ser algo ruim.
Quando eu estava em terra sentia cada vez mais necessidade de estar no mar, e assim fui, como os outros, deixando de voltar à praia durante o dia. Quando voltava, à noite, era muito raro eu me encontrar com alguém que “não era do mar”, isto é: do escritório, mas quando isso acontecia, eventualmente algum turista perdido, a conversa era, invariavelmente, o mar. E, a não ser para cumprir alguma obrigação, também não me comunicava com outras pessoas fora do trabalho. Devo dizer também que, não apenas pelo lugar ser distante, ou por haver uma equipe de segurança que não permitia que nos distanciássemos da empresa, meus próprios colegas também pareciam ter sido “narcotizados” pelo trabalho; nada existia fora dessa realidade. Nos dois primeiros anos foram concedidas férias a todos os funcionários, mas boa parte não saiu da região. A empresa foi então, aos poucos, suprimindo os feriados, e reduzindo tanto o período de férias que ninguém mais se afastava da empresa mesmo quando, em tese, isso era possível.
Eu me acostumei a viver assim, em função da empresa, e isso parecia razoável – afinal, eu não tinha mesmo com o que mais ocupar os meus dias e os meus pensamentos. Mas, com o tempo, comecei a sentir que o ambiente da empresa estava mudando, e isso então passou a me incomodar. Alguns benefícios que tínhamos foram sendo suprimidos, um de cada vez, o que disfarçava o fato de estarmos cada vez mais submetidos à lógica das empresas “normais”, das quais tínhamos orgulho de manter certa distância. Cada vez mais eu sentia que a até mesmo a pequena autonomia que eu tinha para realizar certas tarefas ia sendo substituída paulatinamente por ‘protocolos oficiais’ que padronizavam completamente os trabalhos. Ao mesmo tempo os intervalos entre as tarefas iam sendo preenchidos por mais atividades. Foi assim que em uma tarde, depois de concluir as minhas “atividades marítimas”, eu quis voltar à praia para descansar um pouco, quando apareceu um “fiscal do mar” que me designou mais tarefas e, na prática, me obrigou a ficar todo o restante do dia trabalhando sem descanso. Ele justificou o fato lembrando-me da necessidade de todos se comprometerem integralmente com a empresa, e o tempo todo. Nessa época, começaram a circular alguns boatos de que “o escritório” estava enfrentando uma grave crise, sem assumir publicamente que ela existia. Os boatos, claro, alertavam também para medidas de alto impacto que seriam tomadas. A segurança do negócio estava abalada – isto é: a nossa tranquilidade também começava a parecer sob risco. O que aconteceria? Continuaríamos todos lá nos próximos anos? Se havia planos, ninguém nos dizia.
Ao longo do tempo a empresa tinha crescido muito, um crescimento que parecia um tanto desordenado, e mais duas plataformas marítimas foram construídas. A importância da questão ambiental, e do mar em particular, era a explicação oficial que dizia que o “escritório” tinha se transformado em uma referência internacional em pesquisas marinhas, e por isso recebia grandes encomendas de serviço e grandes financiamentos – mas eu achava estranho que ela não aparecesse em ‘rankings’ oficiais das grandes empresas dessa área. De qualquer forma, fui me tornando parte de uma enorme comunidade de funcionários muito orgulhosos da organização em que trabalhavam, e isso, aparentemente, tinha um peso considerável para ninguém pensar em sair dela. Seria como deixar uma grande família, com um sobrenome muito respeitado, e ficar sozinho no mundo.
Na verdade, eu já tinha ouvido falar de pessoas que tinham deixado a “vida no mar” – por vontade própria, ou excluídas pelo escritório. O que se dizia era que passaram a ter uma existência horrível. Não estávamos presos, mas era como se estivéssemos, porque acreditávamos, sem saber de onde vinha essa ideia, que a única vida digna que poderíamos ter era a de um “trabalhador do mar”. Na verdade, havia uma vigilância crescente e constante sobre todos, mas feita por todos, e principalmente pelos dirigentes de baixo escalão, que eram também funcionários “da água”, como nós, e não apenas pelos dirigentes do nível superior. Ninguém falava em deixar a empresa voluntariamente; quem saísse seria considerado um tipo de “desertor”. Dizia-se que os que haviam assim procedido estavam muito arrependidos, que haviam procurado novamente o “escritório do mar”, mas que nunca mais seriam aceitos. Histórias mais terríveis diziam que alguns, que tinham procurado o “escritório” para se desligar da empresa, o que deveria ser algo normal, simplesmente nunca mais foram vistos. Um dos funcionários mais antigos, que conheci quando “o escritório” ainda estava sendo instalado, e que por isso falava comigo com bastante franqueza, segredou-me certa vez que tudo isso era uma mentira criada pela própria empresa para estabelecer um tipo de “prisão mental” para os funcionários. Eles precisavam acreditar que “o mundo lá fora é terrível”. Isso funcionava, porque assim aceitavam mais facilmente trabalhar de forma cada vez mais intensiva, com poucas reclamações. Foi então que passei a acreditar que, de fato, estávamos realmente presos, e na pior das prisões – a que fica dentro de nós mesmos.
Certo dia, quando eu estava trabalhando, coletando amostras de água, um colega, flutuando ao meu lado, observou: “Você tem reparado que o nível do mar parece estar subindo? Antigamente, quando tínhamos mais tempo, eu costumava nadar para o leste por mais de uma hora; se você fizer o mesmo verá que depois de algum tempo vai chegar a uma extensa faixa de terra que entra pelo mar, coberta em toda a sua extensão por rochedos escuros bem pontiagudos. Eu costumava ir lá para sair um pouco da água, porque descobri um pequeno caminho entre as pedras; eu sabia que lá eu poderia colocar os pés no chão, e até me deitar. Não sei para onde vai esse caminho, mas sei que nesse lugar a equipe de vigilância externa não vai. Na semana passada eu consegui um tempinho para voltar lá, e vi que agora isso não é mais possível. Parece que a água está cobrindo tudo”. E acrescentou: “Vi também uma placa de aviso; parece também que agora é proibido ir lá; deve haver algo perigoso na área”.
Eu já tinha ouvido falar desses rochedos, e os boatos sobre a água também eram comuns e variados, relacionados ao nível do mar, “redemoinhos marítimos”, ou outras coisas como “monstros marinhos” para as quais nunca dei atenção. Mas depois desse relato comecei a observar certos detalhes na paisagem e, observando a praia, notei que havia de fato mudanças. Comecei então a acreditar nessa história de que “o nível do mar está subindo”.
Isso foi, com o tempo, ficando mais perceptível para todos e, um dia, um comunicado oficial da direção da empresa, anunciou que uma “grande inundação” – uma espécie de “tsunami vagaroso”, estava se aproximando, em virtude de uma “mudança dos fluxos das correntes marítimas” e do “degelo das calotas polares”. Era algo que poderia demorar ainda a chegar com força total, mas iria nos afetar com aumentos gradativos todos os anos, e por isso desde já seria preciso que “todos nós fizéssemos alguma coisa”. Segundo os dirigentes da empresa, aparentemente profundos conhecedores da dinâmica dos oceanos, seria preciso que nós, funcionários, ficássemos agitando os braços e as pernas continuamente, quando não estivéssemos realizando alguma tarefa, colaborando para a “inversão dos fluxos aquáticos”, e assim a água não iria mais subir, pelo menos não na região onde estivéssemos. Se a água subisse muito, segundo a empresa, menos funcionários seriam necessários – isto é: demissões aconteceriam, ou, em outras palavras, muitas pessoas seriam atiradas em uma espécie de sub-existência, cheia de privações, e sem nenhuma dignidade - é o que, supõe-se, acontece quando você deixa a vida do “escritório do mar”.
Eu achei a estratégia que anunciaram mais do que estranha, bizarra - mas não estava em posição de discordar, ainda mais porque todos os outros pareciam acreditar que isso seria eficaz, ou estavam tão amedrontados que preferiram ficar calados. Ficar agitando os braços? Que coisa mais sem sentido! Não sei quem teve essa ideia, mas o que ocorreu foi que a partir desse comunicado os nossos dias na água passaram a ser um verdadeiro inferno, porque não tínhamos mais tempo nem para conversar; se não estivéssemos cumprindo qualquer tarefa, ficávamos o tempo todo agitando freneticamente a água, como náufragos tentando desesperadamente flutuar.
As proibições e o aumento das tarefas, cuja importância ou necessidade era bastante discutível, foram ficando cada vez mais frequentes; eu passei a me alimentar mal e não descansava adequadamente; comecei também a ficar muito ansioso. A “burocracia marítima” aumentava continuamente, e para fazer qualquer procedimento simples de trabalho era necessário acessar uma plataforma online, para fazer registros eletrônicos, bem como participar de reuniões tediosas para ouvir, mais do que para dizer algo ou discutir alguma ideia. O discurso de “democracia empresarial” que conheci quando entrei na empresa ainda existia, mas sem nenhuma existência concreta. Na verdade, todas as decisões importantes passaram a vir “do escritório”, para serem acatadas sem discordâncias. Eu e alguns outros tínhamos a nossa própria interpretação do problema, baseada no que havia de errado com a própria organização, além dos fatores externos – mas não havia lugar algum onde pudéssemos falar. E, pior, sabíamos que jamais seríamos realmente ouvidos. Tudo isso contribuía para o desgaste geral nas relações entre colegas, e um clima de medo e ansiedade se instaurava paulatinamente.
Voltar à praia durante o dia passou a ser uma atividade controlada; colocávamos os pés na areia, mas não tínhamos autorização para nos afastarmos muito da água. Segundo os fiscais o ideal seria não perdermos o contato com água em nenhum momento. A empresa tencionava fazer dormitórios marítimos para todos os funcionários, mas isso ainda era só uma ideia, e, assim, cada pessoa ainda podia ir para sua própria casa para dormir – mas, devo lembrar que todas as casas estavam situadas no “bairro da empresa”. Os funcionários podiam sair, visitar colegas e ter uma vida aparentemente normal, mas como o tempo de descanso era mínimo, embora não fosse proibido, ninguém fazia nada que não fosse ligado ao trabalho, que era também o assunto de quase todas as conversas. É verdade que alguns funcionários eram casados e, eventualmente, tinham filhos, e, ainda que distantes, nos primeiros anos era possível dedicar a eles alguma atenção, conversando por telefone ou pela internet – mas depois de alguns anos esse tempo foi sendo reduzido ao mínimo.
Quando eu entrei na empresa isso não era assim, mas progressivamente a vida de cada funcionário foi se fechando cada vez mais em torno da empresa. Embora morássemos todos no mesmo bairro, vivíamos todos isolados, cada um em sua própria casa. Visitas ou convites para sair no final de semana, para pequenas expedições nos arredores, por exemplo, foram escasseando até desaparecerem completamente. Todos os encontros eram relacionados ao trabalho, que absorvia todo o tempo, todos os pensamentos e todas as preocupações. No início o trabalho à distância era inexistente; a empresa então cuidou de providenciar o acesso à internet, e aos poucos, essa modalidade foi ocupando todo o tempo livre. No começo eram só algumas reuniões, mas, à medida que a empresa declarava que precisava de mais eficiência e comprometimento, todo o tempo que deveria ser para o descanso ia sendo consumido. Nos finais de semana todos levavam trabalho para fazer em casa. Atividades caseiras de rotina e a comunicação com os familiares consumiam o tempo restante, e se sobrasse algum, a Netflix propiciava o entretenimento mais conveniente, até que o sono vencesse a exaustão.
Por isso, os momentos logo depois do trabalho eram os únicos em que era possível relaxar um pouco, fisicamente ausente da empresa e ainda fora das atividades em casa. Às vezes alguns funcionários – os mais “rebeldes”, os solteiros, os que estavam prestes a se aposentar – encontravam-se nesse momento em um estabelecimento situado na entrada do condomínio, antes de ir para casa logo após o trabalho. Era um lugar que tinha vários usos e funções, mas era na verdade um tipo de mercearia, de propriedade da própria empresa, que bancava a sua viabilidade naquele local deserto. Foi em uma dessas noites, nesse local, logo depois do trabalho, que ouvi um funcionário antigo, de um departamento obscuro da empresa, contar que teve notícias de um de nossos colegas desaparecidos – um dos que tinha conseguido “abandonar o mar” – isto é: a empresa e seu mundo. Ele soube que esse colega estava muito bem; que morava em uma praia muito agradável, e lá vivia tranquilamente, com sua pequena família, gerenciando seu próprio estabelecimento comercial, uma pizzaria.
Isso me pareceu maravilhoso: eu estava convivendo há tanto tempo com as mesmas pessoas que estava começando a suspeitar de que viver “no mar” seria um destino, algo para toda a vida; era bom ouvir histórias que dissessem o contrário! Enquanto ele falava, os que estavam próximos faziam cara de incredulidade; perguntavam: “Mas como é que alguém que sai do ‘escritório’ consegue viver? A vida dele certamente piorou muito!” E até coisas muito estranhas, como: “Mas não é possível ficar em terra o tempo todo! É preciso ficar dentro d’água pelo menos quatro horas por dia!” Foi quando percebi que alguns tinham perdido totalmente o sentido de realidade, tendo se esquecido de que um dia viveram todo o tempo em terra firme, e não dentro da água.
Enquanto isso os meus dias continuavam da mesma maneira: eu praticamente acordava dentro d’água, agitando freneticamente os braços e as pernas, sob os olhos atentos dos fiscais, e então me afastava, mar adentro, para as minhas tarefas. Fiquei aterrorizado quando passei a sonhar com isso várias vezes. O ritmo do trabalho também ia sendo alterado; eu às vezes tentava trabalhar sozinho na empresa, como fazia no início, porque a presença dos colegas geralmente significava o compartilhamento de reclamações, e possibilitava que mais trabalho surgisse, mas, mesmo quando era uma tarefa individual, na qual nenhuma participação melhoraria os resultados, o “escritório” estava sempre elaborando algo para que esse esforço fosse parte de um trabalho em equipe, e obrigando todos a participarem continuamente de reuniões. Com o tempo passei a ter certeza de que essas obrigações eram formas de controle dos indivíduos uns sobre os outros, disfarçadas de “colaboração entre as áreas”.
Eu sabia que o mundo “lá fora” continuava existindo, mas eu estava em lugar que o deixava muito longe... E tinha ainda que suportar os “fiscais do mar” repetindo o tempo todo que o “grande tsunami” estava chegando, e que deveríamos permanecer agitando todo o corpo até a completa exaustão - para o bem da empresa e, portanto, para o nosso próprio bem. Às vezes recebíamos também notícias de “outros mares”, onde outras pessoas também estavam nessa agitação frenética, e os fiscais diziam que eles estavam tentando “empurrar o tsunami para nós”, e que, para evitar isso, precisaríamos fazer o mesmo, e com mais força, para conseguirmos a “inversão das correntes marítimas”.
Como eu disse, desde o início eu não acreditei nessa forma de enfrentar o problema, que me parecia completamente desprovida de sentido. Porque agitar os braços evitaria um tsunami? Não parecia nada razoável. Eu comentava isso às vezes com algum colega mais próximo, fazendo piadas, e foi então que comecei a parecer suspeito para os “fiscais do mar”. Às vezes ouvia insinuações sobre minha “inadequação para o serviço”, e me lembrava de outros funcionários que tinham sido “desligados”, e sobre os quais era, na prática, proibido falar. Ninguém sabia nem mesmo se ainda estariam vivos... Seria a realidade do escritório realmente apenas uma “prisão mental”, ou a equipe de segurança externa poderia realmente fazer coisas terríveis?
Foi com essas preocupações em mente que me lembrei da história que tinha ouvido sobre os rochedos, onde supostamente, há tempos, era possível sentir o solo sob os pés longe de qualquer vigilância, e decidi ir até esse lugar fazer uma pequena investigação. Escolhi uma noite mais clara, de lua cheia, e nadei em direção ao local. Eu sabia que era proibido ir ali, e por isso tomei muito cuidado para não ser visto. Lá chegando, mergulhei e procurei, em cada trecho perto das pedras, o solo, ao fundo - e realmente não era mais possível alcançá-lo. A profundidade era enorme. Não parecia também ser possível sair do mar escalando as rochas, muito íngremes. Mas não desisti, e nadei em volta dos rochedos, olhando cada detalhe com a máxima atenção que a claridade permitia. Vi então, bem escondida, uma fenda quase invisível no alto, entre algumas pedras. Não parecia haver rochas atrás; vislumbrei o que parecia ser o caminho que eu procurava. Seria preciso escalar apenas alguns rochedos para alcançar essa trilha. Estava escuro, mas naquele momento me pareceu ser possível, por ali, sair do mar, mesmo sem ter certeza de sua existência, ou onde essa trilha iria levar. Estaria eu enganado? Acho que a esperança da liberdade ajudou-me a pensar que não... Olhei novamente, procurando novos ângulos, e parecia realmente que era uma saída possível; fiquei animadíssimo com a descoberta! Confesso que tive um pouco de medo de avançar mais, para verificar de fato se a trilha continuaria da forma como eu esperava, e decidi, naquele momento, nadar de volta. Mas eu tinha passado a acreditar que havia um caminho possível, e resolvi então me preparar para tentar a fuga, quando fosse possível, mesmo correndo o risco de fracassar. Seria melhor do que deixar claro o meu descontentamento e procurar o escritório para me desligar; eu não sabia o que poderia me acontecer se soubessem claramente da minha insatisfação. Um temor exagerado? Talvez...
Em poucos dias preparei então uma mochila de viagem. Coloquei um pouco de comida, algumas roupas, um cobertor, e poucas ferramentas que achei que poderiam ser úteis, porque não sabia se, depois de sair do mar, que tipo de terreno encontraria, e se teria que andar muito até encontrar alguém. Depois de uma semana, eu estava pronto e, então, uma noite, cuidadosamente, para não ser notado, nadei para os rochedos. Cheguei ao ponto onde tinha avistado a fenda entre as rochas, protegi minhas mãos com o cobertor, que era bem grosso, e consegui subir. Alcancei então a trilha entre as pedras, e foi a primeira vez, depois de anos, em que eu não tinha mais nenhum contato com a água sem estar em um ambiente vigiado. Fiquei animado e comecei a andar mais rapidamente. Curiosamente a trilha prosseguia indefinidamente por entre as pedras; parecia ter sido feita por mãos humanas. Andei assim, sem parar, durante cerca de duas horas. O ar estava muito puro, e eu não fiquei nem um pouco cansado. Lembrei-me que fazia muito tempo que eu não olhava para o céu, e depois dessas duas horas parei um pouco para ver a enorme quantidade de estrelas cuja existência eu havia esquecido por tantos anos. Depois de caminhar mais um pouco avistei, próximas umas das outras, algumas casinhas bem modestas. Dirigi-me para uma delas, bati palmas para que alguém notasse a minha presença, até que uma mulher jovem abriu a porta. Olhou para a minha aparência, sorriu e perguntou: “Você também fugiu do mar?”
Ela morava com o marido, e tinha uma vida simples, mas muito tranquila, segundo me disse. Plantavam e colhiam os legumes e as hortaliças que comiam, e vendiam o que não era tão rapidamente perecível; um deles levava os produtos à cidade mais próxima. À noite faziam coisas que gostavam: pintar e fazer esculturas, principalmente – tanto trabalhos artísticos quanto peças de artesanato mais comuns que poderiam ser do interesse de turistas, e que também eram levadas à cidade pelo mesmo intermediário. Havia outras pessoas que moravam próximas, e as visitas eram frequentes; nos aniversários sempre havia festas e todos participavam. Eles tinham uma filha pequena que recitou para nós um poema que ela mesma escreveu. Conversamos durante o jantar, eles me explicaram que a trilha tinha sido feita por eles mesmos, moradores, porque há muito tempo aquele ponto do litoral era um bom lugar para pescar. Mesmo depois que tinham abandonado o hábito de comer peixes em virtude da poluição a trilha permaneceu, porque o terreno é muito pedregoso, e a vegetação não prospera. Moravam lá cerca de vinte famílias, alguns moçambicanos, e outros de diversas partes do mundo. Conversamos mais e depois fomos deitar. Dormi profundamente, e ninguém me despertou; quando me levantei, tomamos café; me despedi cheio de alegria e, orientado por eles, tomei o rumo da cidade. Depois de dois dias eu já estava Embaixada do Brasil na capital do país, onde disseram-me que eu não teria problemas para voltar.
EPÍLOGO
Já faz quase um ano que deixei o mar. Tenho novamente uma vida tranquila, e me espanta lembrar que, assim como eu pensava, tantos ainda acreditam que a vida fora daquela empresa é impossível, e continuam lá, vivendo assombrados pelos “fiscais do mar”. Como eu suspeitava, o “escritório do mar” não incomoda quem o abandona; os “fiscais do mar” aliás, são seres sem nenhuma importância, e sua pequenez é evidenciada pela rapidez com que são esquecidos. Percebo também que o mar sob responsabilidade do “escritório” é uma fração muito pequena da realidade, e que quase ninguém, além do que lá estão dá importância às atividades da empresa, que, diferentemente do que eu ouvia quando lá estava, ocupa um lugar insignificante entre as outras existentes no mundo que têm a mesma atividade. Mesmo do ponto de vista da sua importância local, o nobre propósito que a empresa um dia teve só não se perdeu completamente pelo esforço pessoal de muitos dos seus funcionários mais antigos – muitos dos quais são os mais incompreendidos e desvalorizados pela instituição. Hoje entendo que o “escritório do mar” passou a ser apenas mais uma empresa tentando sobreviver, e que infernizar a vida dos seus funcionários, mesmo não intencionalmente, faz parte desse esforço. Talvez no futuro ela possa corrigir o estranho caminho que escolheu.
Voltei a ter uma vida tranquila, envolvido pela música, cuidando da minha casa, da minha horta, cozinhando, passeando, namorando, dormindo, sonhando... As economias que fiz enquanto trabalhei no “escritório” são suficientes para manter meu estilo de vida praticamente no mesmo nível de antes, com a diferença abissal que é passar os meus dias num mar de tranquilidade, e não num mar de incertezas. Aprendo aos poucos também a limitar os meus desejos, e a valorizar o que realmente importa, e que certamente não está à venda em shopping centers. Não posso esquecer de dizer que voltei a procurar alguns dos poucos funcionários do escritório com os quais eu tinha vínculos reais de amizade. Demoraram para me responder, e, para minha tristeza, disseram-me que tinham pouco tempo para conversar. “Até quando?” – pensei.
Tudo está muito bom, mas confesso que ainda não estou totalmente satisfeito; soube que existe um outro mundo, de seres alados, que além de não viverem no mar, nem tocam a terra! Acho que é possível que exista um caminho para lá, também. Devo agora encontrá-lo, assim como encontrei a trilha entre os rochedos.
.