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Comentários sobre a transição feudalismo/capitalismo e o surgimento da figura do empresário e administrador

 

                                                                                                       josé wanderley novato-silva 

O Nascimento das Fábricas. DECCA, Edgar Salvadori de. São Paulo, Ed. Brasiliense

O livro trata do surgimento do capitalismo analisando simultaneamente a origem das fábricas e o surgimento da figura da gerência nesse novo tipo de organização que apareceu na Europa a partir do fim do sistema feudal.

Esse processo aconteceu de forma assimétrica nas diferentes regiões daquele continente, ao longo dos séculos XIII, XIV e XV, acompanhado – nos costumes, na religião e na legislação - de uma nova concepção do trabalho, progressivamente internalizada pela população – o trabalho como algo “bom” e “dignificante”, enquanto o ócio é “mau” e “pecaminoso”.

O processo de transformação do modo de produção feudal foi iniciado, segundo o autor, por uma mudança na estrutura da produção artesanal, que era periférica ao feudalismo, predominantemente agrícola. Nos primórdios do capitalismo, segundo ele, o trabalho dos artesãos começou a se estruturar através de um ‘sistema doméstico’ (ou putting-out system, em inglês). Trata-se de uma forma de produção terceirizada, em que os artesãos trabalhavam em suas casas, e entregavam aos comerciantes as encomendas. O putting-out system foi bastante usado na produção de calçados, cofres, e as primeiras armas de fogo de pequeno porte. Os trabalhadores do sistema doméstico tinham flexibilidade para equilibrar as tarefas agrícolas e domésticas com o trabalho de fabricação desses produtos, o que era particularmente importante no inverno. Mas o sistema doméstico, por depender de trabalhadores rurais, era de difícil coordenação.

 

Foram então assumindo mais importância as corporações de ofício nas cidades medievais. As corporações de ofício eram associações de artesãos, com uma hierarquia – mestres, oficiais e aprendizes. Em cada cidade medieval havia várias corporações: de carpinteiros, de ferreiros, tecelões, ourives etc. Elas definiam preços comuns e regras para o ingresso na profissão. Uma pessoa só podia trabalhar em algum ofício se fosse membro da corporação; se não, poderia ser expulso da cidade. Elas também amparavam os trabalhadores em caso de velhice ou doenças. E uma característica fundamental era o controle das técnicas de produção pelo produtor, com jovens aprendizes trabalhando junto aos mestres.

 

À medida que havia mais demanda para a produção, foram, então, surgindo formas de divisão de trabalho. No setor têxtil, por exemplo, as diferentes fases do processo, como a fiação, tecelagem, acabamento e tingimento foram sendo estabelecidas em diferentes tipos de artesanato, ocasionando problemas de coordenação entre as corporações de ofício de cada uma dessas áreas.

 

A necessidade crescente de organizar a produção fez surgir primeiramente a figura de um coordenador central, um artesão que se situava no fim ou no início do processo de produção; era ele a figura que fazia o contato com os mercadores (comerciantes). Este tipo de organização da produção foi se aprimorando a partir do século XIII, e, à medida que o comércio se desenvolvia em algumas regiões da Europa, no século XV e XVI, foi dando lugar a formas mais elaboradas.

 

Com a atuação desse coordenador os comerciantes de longa distância passaram então a fazer contratos diretos com as corporações de ofício, exigindo a entrega dos produtos em quantidades maiores. Para isso adiantavam uma parte do pagamento para a compra da matéria prima. Embora parecesse um acordo satisfatório, isso deixava os comerciantes dependentes do cumprimento da entrega dos produtos, e sem qualquer controle dessa entrega na quantidade contratada e nos prazos combinados – e a coordenação entre as corporações não era suficiente para garantir esse cumprimento. Embora os contratos fossem vantajosos para as corporações e também para os comerciantes, porque permitia a ampliação das suas vendas, a falta de controle integral do processo era um problema para o crescimento dos negócios dos comerciantes, que se expandia pela Europa. Alguns desses comerciantes tinham origem nas próprias corporações, e como comerciantes manufatureiros foram, a partir da comercialização da produção sempre crescente, obtendo cada vez mais lucros. Passaram então a atuar dentro de uma nova maneira.


Eles podem ser considerados os primeiros capitalistas, integrantes de uma nova classe de pessoas, chamada de burguesia. Eles começaram a recrutar produtores no interior, onde o trabalho e os impostos eram mais baratos, e reorganizar a produção de uma forma mais flexível, porque as corporações de ofício na forma tradicional tinham dificuldade para se adaptar aos novos tempos da Europa a partir do Renascimento, quando, com o florescimento das cidades, novos gostos e novas modas surgiam.

 

 

Assim, com o tempo, esses capitalistas (comerciantes/empresários) passaram a controlar ainda mais a produção dos artesãos, reunindo-os em oficinas que deram origem à manufatura. As manufaturas são sistemas de produção ainda artesanal, mas com divisão de trabalho mais complexa. As manufaturas superaram ao longo do tempo as corporações de ofício, marcando um novo momento no processo histórico de transição do mundo feudal para o capitalismo. Nasceram dessa maneira as primeiras fábricas. O status superior que os mestres tinham alcançado nas corporações de ofício no final da Idade Média fez com que muitos deles assumissem o papel de empresários ou administradores do trabalho nas manufaturas, fazendo surgir a figura da gerência numa nova dimensão hierárquica de vigilância, disciplina e controle - contra a qual os trabalhadores frequentemente se rebelavam.

 

O sistema doméstico foi então entrando em declínio, embora continuasse a existir de forma pontual em algumas regiões. Além disso a reunião dos trabalhadores no mesmo espaço da fábrica permitia uma crescente especialização do trabalho. Isso era estimulado pelos proprietários porque, dessa forma, o conhecimento integral que tinham os artesãos do processo e do produto foi sendo progressivamente apropriado por eles e seus gerentes. A busca por formas de padronização dos trabalhos e produtos também foi obrigando progressivamente os trabalhadores a abandonarem as suas ferramentas, passando a trabalhar com os instrumentos das oficinas. Com o tempo, os empresários/administradores passariam a ser os únicos que dominavam todas as fases do processo de fabricação, passando a deter também a posse dos instrumentos de trabalho. A especialização crescente favorecia o desenvolvimento de máquinas, afastando cada vez mais os trabalhadores da posse dos meios de produção.

 

Na realidade, o sistema doméstico era adequado aos tempos pré-urbanos da Europa, porque os trabalhadores não precisavam viajar de casa para o trabalho, o que era complicado devido à inexistência de estradas, ou mau estado das trilhas; além disso, os deslocamentos eram perigosos, porque as florestas escondiam criminosos. Por isso, os primeiros donos de fábricas eventualmente eram obrigados a construir dormitórios para abrigar os trabalhadores. Cabe lembrar nesse momento que não havia nenhum tipo de legislação que protegesse essa recém inventada classe operária, e, forçados a vender a sua mão de obra, homens, crianças, idosos e mulheres, mesmo grávidas, eram submetidos às mesmas condições de trabalho. À medida que a Revolução Industrial se consolidava, com o surgimento de indústrias maiores e mais complexas, esse quadro social de exploração social e péssimas condições de trabalho, habitação e saúde foi se agravando, enquanto crescia a acumulação capitalista.

 

Resumindo, o putting-out system pode ser considerado um passo inicial no caminho do modo de produção industrial. À medida que o conhecimento e os meios de produção eram expropriados dos artesãos, a necessidade de controle levou à reunião desse novo tipo de força de trabalho assalariada nas primeiras fábricas. Foi só a partir daí que a Revolução Industrial ganhou força, e o conhecimento científico foi gerando progressivamente os avanços tecnológicos que mudaram a face da Europa agrária, transformando-a no centro econômico industrial do mundo. Em 1765 o engenheiro escocês James Watt inventou o condensador, aumentando a potência do motor a vapor; em 1768 foi criada a máquina de fiar avançada, e assim por diante. O setor têxtil, mencionado no início desse texto, após a invenção da máquina de costura em 1846, passou a ser progressivamente dominado pelas confecções de roupas prontas.  

 

É importante observar que países que têm regiões ainda em fase de industrialização frequentemente é possível encontrar ainda algumas formas do putting-out system. Ele ainda existe como um tipo de organização pré-capitalista com poucas inovações tecnológicas na China e em outros países da Ásia, como Índia, Filipinas e Indonésia, e nas Américas – incluindo o Brasil.

Trechos do livro

 

“[…] basta considerarmos a transformação positiva do significado verbal da palavra trabalho, que até a época moderna sempre foi sinônimo de penalizações e de cansaços insuportáveis, de dor e de esforço extremo, de tal modo que sua origem só poderia estar ligada a um extremo de miséria e pobreza. Seja a palavra latina e inglesa labor, ou francesa travail, ou grega ponos ou alemã Arbeit, todas elas, sem exceção, assinalam a dor e os esforços inerentes a condição do homem.” (p. 7)

“Como sempre vemos na sociedade, seja ela nova ou pré-histórica... o resultado e os modos de uma classe para impor sua ideologia para toda uma sociedade.” (p.7)

“[…] introduzir um relógio moral no coração de cada trabalhador foi a primeira vitória da sociedade burguesa […] Foi através da porta da fábrica que o homem pobre, a partir do século XVIII foi introduzido ao mundo burguês.” (p. 10)

“Como a ideia trabalho evoluiu nos tempos... No começo querendo dizer pobreza, maldições, coisa da ralé (antes e durante a idade média). Hoje em dia “o trabalho dignifica o homem.” Século 17: o trabalho e a riqueza das nações.” (p. 10)

“[…] o trabalhador era o dono da força de trabalho. Vendia seu tempo, ou a si próprio.” (p.10)

“Somos induzidos, a pensar dentro duma lógica definida, que não é ditada por leis de mercado, mas sim regida por mecanismos sutis de controle social […] pensar, portanto, é pensar segundo regras já definidas, e o seu contraponto, no nível de sociedade, é justamente a impossibilidade de pensar além das regras.” (p.13)

“[…] essa introjeção de um relógio moral no corpo de cada homem demarca decisivamente os dispositivos criados por uma nova classe em ascensão. Autodisciplina, controle de si mesmo, crítica a ociosidade, são exigências imperiosas para o comerciante que se envolve na esfera do mercado.” (p. 15)

“[…] o mercado transforma-se, assim, em uma entidade universal através da qual os homens se reconhecem a si próprios e se opõe a qualquer dispositivo imaginário que coloque a ordem social fora do âmbito desse novo universo.” (p. 18)

“[…] a produção histórica de uma classe de proprietários dos meios de produção, ao mesmo tempo em que outra classe se constitui como assalariada e despossuída, decorre de um confronte que, no final, faz parecer para os sujeitos sociais a imagem que existe a imperiosidade da figura do capitalista, como elemento indispensável para o próprio processo de trabalho.” (p. 19)

“[…] a interposição da figura do negociante entre o mercado e a produção artesanal, segundo ele, representou (segundo Marglin), o momento pelo qual se impôs a essa produção a figura indispensável do capitalista, criando uma hierarquia social sem a qual, desde então, o próprio processo de trabalho, fica impossibilitado de existir.” (p.20)

“Entretanto, seguindo as pistas do autor (Stephen A. Marglin) vale a pena indagar porque estes trabalhadores foram reunidos a partir de um determinado momento num mesmo local de trabalho, constituindo aquilo que ficou conhecido como sistema de fábricas.” (p. 22)

“[…] Marglin nos mostra que nenhuma tecnologia muito avançada determinou a reunião dos trabalhadores no sistema de fábrica (coisas que muitos afirmam), […] o que estava em jogo era justamente um alargamento do controle e do poder por parte do capitalista sobre o conjunto de trabalhadores que ainda detinham o conhecimento técnico e impunham a dinâmica do processo produtivo […]” (p. 23)

“[…] na fábrica, a hierarquia, a disciplina, a vigilância e outras formas de controle tornaram-se tangíveis a tal ponto que os trabalhadores acabaram por se submeter a um regime de trabalho ditado pelas normas dos mestres e contramestres, o que representou, em última instância, o domínio capitalista sobre o processo de trabalho.” (p. 24)

“[…] embora pudessem ser encontradas máquinas nas primeiras fábricas, muito raramente essas máquinas chegaram a se constituir na razão do surgimento das fábricas. Enfim, o surgimento do sistema de fábrica parece ter sido ditado por uma necessidade muito mais organizativa do que técnica, e essa organização teve como resultado para o trabalhador, toda uma nova ordem de disciplina todo o transcorrer do processo de trabalho.” (p. 25)

“[…] Em outras palavras, o êxito da revolução estava intimamente ligado à afirmação de novas relações de poder hierárquicas e autoritárias.” (p.30)

“[…] as dimensões do fracasso das primeiras experiências fabris, ainda assim podemos afirmar que a resistência do trabalhador ante os avanços do sistema de fábrica foi decisiva durante esse período […]” (p. 30)

“[…] a ameaça de mecanização, como desemprego implícito que levava consigo, era frequentemente utilizada pelos patrões para manter os baixos salários.” (p. 32)

“[…] Como afirmou Andrew Ure, ao dobrar o tamanho de sua máquina de fiar, o proprietário teve condições de se livrar dos fiandeiros indiferentes ou inquietos e de converter-se de novo no dono de sua fábrica, o que é uma pequena vantagem.” (p.34)

“[…] quando o capital consegue que a ciência se coloque a seu serviço, a mão de obra refratária aprende a ser sempre dócil […]” (p.35)

“[…] por isso, em 1932, já observava o inglês James Philip Kay: “ a máquina animal - frágil no melhor dos casos, sujeita a mil fontes de sofrimento - se encontra firmemente encadeada à máquina de ferro, que não conhece nem sofrimento nem cansaço.” (p. 36)

“A fábrica produziu, ao mesmo tempo que proliferou-se, um conjunto complexo de instituições capazes de garantir a sua permanência e, o que é mais importante, capazes de garantir a continuidade da acumulação capitalista.” (p.37)

“[…] o sistema de fábrica introduz determinantes que lhe são inerentes, não importando que esse sistema se desenvolva num ambiente capitalista ou em outro qualquer […] pois ele traz em seu bojo todas as implicações relacionadas à disciplina, hierarquia e controle do processo de trabalho.” (p. 38)

“[…] assim, o sistema de fábrica, forma de organização superior do processo de produção capitalista, precisou antes (cronologicamente) encontrar o seu ambiente natural no centro do sistema e somente depois pode se estender para o resto do mundo.” (p.42)

“[…] nada mais corriqueiro do que determinar a gênese da indústria e do capitalismo, no Brasil, no final do séc. XIX, no momento em que o país se reposicionou na órbita do mercado mundial […] o capitalismo brasileiro aparece dotado de qualificativas do tipo atrasado, tardio, dependente […]” (p. 42)

“[…] No momento histórico do desenvolvimento do “puting-out system” na Europa, a partir do século XVI no Brasil se instaurava todo um processo de trabalho baseado na escravidão […] engenhos de açúcar […]” (p. 43)

 “[…] O sistema de fábrica, como um universo de relações sociais, estendeu-se pelas inúmeras instituições públicas e privadas que não só permitiam e legitimavam o controle e a disciplina fabril, como também abriram caminho para que se produzisse uma esfera de conhecimento tecnológicos onde se opera a radical apropriação do saber.” (p.68)

“[…] assim o sistema de fábrica manchesteriano, a nosso ver, tornou-se vitorioso porque nele desenvolveram-se as condições para que a tecnologia pudesse se transformar num elemento prioritário da acumulação capitalista. […]” (p.70)

“O cortejo tecnológico que acompanhou mundialmente o setor manufatureiro, no séc. XIX excluía do mercado capitalista não apenas as pequenas iniciativas individuais, como também, tornou imprescindível a figura do capitalista _ e ai está em jogo o papel do capital _ organizava o processo de trabalho imposta pelo próprio funcionamento do aparato tecnológico.” (p.71)

 "[...] o sistema de fábrica, como o lugar privilegiado para a produção e efetivação de saberes técnicos, não tem os seus limites na ordem capitalista. Pensemos, por exemplo, o caso da União Soviética, reconhecida por muitos como alternativa histórica do capitalismo. Lá também o sistema de fábrica ao se implantar, trouxe consigo todas as sequelas relacionadas à disciplina, hierarquia e controle do processo de trabalho, e o saber técnico aplicado esteve muito longe de ser detido pelos próprios trabalhadores.

Enfim, o sistema de fábrica introduz determinantes que lhe são inerentes, não importando que esse sistema se desenvolva num ambiente capitalista ou em outro qualquer, pois ele traz em seu bojo todas as implicações relacionadas à hierarquia, disciplina e controle do processo de trabalho, ao mesmo tempo em que se dá uma separação crucial: a produção de saberes técnicos totalmente alheia àquele que participa do processo de trabalho." (p. 38)

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